Sorria Para o Seu Alvo

No ano passado, quando eu ainda trabalhava na Livraria da Travessa do Leblon, um dos meus colegas livreiros (e também escritor) lançou um desafio: que nós escrevêssemos contos relacionados à temática livriaria/livros para serem publicados em uma antologia. A ideia era contar casos, ou "causos" que aconteciam no nosso dia-a-dia de labuta. Coisas engraçadas, ou não, mas pertencentes àquele universo. O nome dessa antologia de contos, a princípio seria: "Eu queria um livro, mas esqueci o título, não lembro o autor, nem sei de qual editora é..." - que era (e deve ser até hoje) uma solicitação recorrente.  Mas, achamos um tanto grande demais para um título e ficou sendo só "Eu queria um livro" - Antologia de Contos e Cenas Livrescas. 
Depois de pensar uns dias, resolvi que eu toparia sim essa aventura de escrever algo. Correndo o risco de ser publicada. E como eu era responsável pela seção infantojuvenil, devorava um livro atrás do outro de autoras como Meg Cabot, Stephenie Meyer e Thalita Rebouças, pensei que seria mais divertido escrever nessa linha e para esse público. Afinal, na antologia tinha que ter de tudo um pouco.
À venda na Livraria da Travessa
 Então, eis que para minha total e absoluta surpresa, Leandro Muller, o organizador, gostou do meu conto. E mais ainda, fomos publicados! 
Com direito a prefácio de Rubem Fonseca, "Eu queria um livro..." foi lançado pela editora agir, numa noite de autógrafos em setembro de 2010, na própria Travessa do Leblon. 
Nem preciso dizer o quanto fiquei feliz, não é?!

Transcrevo abaixo, o "famoso" conto. Não é muito pequeno mas é, no mínimo, uma leitura divertida.




Sorria Para o Seu Alvo

Só que não sou tão boazinha assim...
Aquela era uma das manhãs em que eu chegava ansiosa e animada à livraria. Era uma manhã de sábado. Eu tinha acordado mais cedo e demorado bem mais que o normal decidindo o que vestir para ir trabalhar. Geralmente usava algo básico e prático porque, quando se trabalha numa seção infantil de uma livraria você se sente a Branca de Neve na casa dos sete anões, onde tudo é muito pequeno e baixo, o que significa ficar abaixada a maior parte do tempo catando livros espalhados pelo chão. Acredite, saia e roupa justa é a última coisa que você vai querer. Só que aos sábados eu não quero parecer uma livreirazinha sem graça, vestida em tom pastel com óculos horríveis que nem de longe dão aquele ar inteligente sexy. Ah não, aos sábados eu preciso parecer interessante e divertida, alguém que chame a atenção dele...
Sim, é óbvio que o motivo da indecisão só podia ser esse: um cara. Ou melhor, o cara mais lindo que já entrou nessa livraria em todos os tempos! Ele vem sempre aos sábados (às vezes domingos também), chega logo depois da abertura da loja com a filha, a garotinha mais fofa da face da terra, que deve ter uns 2 ou 3 anos e os estonteantes olhos azuis do pai. O cara é um escândalo, daquele tipo que você olha e pensa: “Apolo desceu do carro do sol e está aqui na minha frente”. Loiro, alto, ombros largos, os olhos de um azul profundo hipnotizante. Ah, e tem também aquele sorriso delicioso, claro, alegre com dentes muito, mas muito brancos mesmo. Um príncipe, que vem e se senta sempre na poltrona em frente ao terminal de consulta onde eu fico, enquanto a Sofia, sua princesinha, se diverte com os livros, deixando aquela baguncinha típica. Eu nem me importo, acho que arrumar tudo depois é um custo até baixo perto do enorme benefício que é poder admirar (com olhadelas furtivas) o espetáculo que é o pai dela. 

O pai da Sofia (tá, não era exatamente esse aí, mas só pra você ter uma ideia...)

Depois de quase uma hora na dúvida acabei vestindo meu melhor jeans e uma batinha vermelha linda e bem confortável. Arrisquei uma maquiagem leve, que me tomou mais um tempo. Por causa disso cheguei quinze minutos atrasada, pensando que nos próximos sábados tenho que acordar mais cedo ainda, porque nesse ritmo vou acabar sem salário no fim do mês, de tantos descontos por atraso.
Quando ia me aproximando da seção, vi que eles já estavam lá. Um sorriso involuntário veio à minha boca. Eu imediatamente comecei a andar mais devagar e me concentrei pra não parecer uma idiota. O que foi inútil, porque quando passei por ele desejando o meu “ bom dia” de sempre e ele abriu aquele sorriso solar dizendo “bom dia” com sua voz grave e musical, meu coração disparou, as bochechas queimaram, um arrepio ondulou pelo meu corpo e me senti uma idiota completa... Ai, meu Deus, ele precisa ser tão perfeito?! Continuei andando, num esforço para não tropeçar em nenhum dos livros que a doce Sofiazinha querida espalhava ferozmente pelo chão e, ao mesmo tempo, tive de me abaixar várias vezes para pegar todos eles. As minhas chances de não parecer idiota acabaram nesse momento.
Bem, óbvio que não repreendi a garota. Não sou estúpida a esse ponto, na verdade nem liguei. Coloquei os livros na caixa de devolução, para guardá-los depois, fui até ela sorrindo e disse:
— Bom dia, Sofia! Nossa, como você está linda hoje!
— Eu não sou a Sofia... — Respondeu a criança com uma carinha marota.
— Ah sim, claro, me desculpe, Princesa Aurora. Você está linda!!! — falei, percebendo que ela usava o vestido da Bela Adormecida hoje. A menina deu uma risada gostosa e me pediu para ler a história da “Barbie e o Castelo de Diamante”(1) pela enésima vez, o que eu fiz de bom grado, porque é nessas horas - quando leio para Sofia - que ele mais olha pra mim. Quer dizer, olha pra nós duas. Na verdade, acho que mais pra própria filha, mas não importa, eu gosto de pensar que é pra mim. Ele fica lá, olhando com carinha de feliz, admirando o gosto da menina pela leitura, certamente.
Foi então que ela chegou.
A deusa-loira

Não a misteriosa mãe da Sofia, que essa eu nunca vi. Mas uma cliente desconhecida, absolutamente linda, mais parecendo uma deusa com aqueles cachos definidos e dourados, no volume certo, a pele uma seda, bronzeada, realçando ainda mais o dourado dos cabelos. Magra. Em toda extensão do bom sentido da palavra e ainda usando um vestido frente única de decote provocador sem ser vulgar, que deve ter sido caríssimo.

Nessa hora pensei: por quê?! Por que essa mulher tinha que vir logo pra cá? Ela não está com nenhuma criança, nem tem cara de mãe. Tanto lugar nessa livraria enorme, ela tinha que vir justo pra cá?! É muito azar!
Percebo que ela pegou um livro em uma das pilhas da autoajuda, se sentou, abriu numa página aleatória e começou a ler. Fiquei chocada. Se uma deusa dessas precisa de autoajuda, eu preciso de quê, então??? Socorro! 
Olhei para o pai da Sofia e vi que ele observava discretamente a mulher, o que não me surpreendeu nem um pouco. Surpreso ficou ele quando, depois de uns minutos ela levantou os olhos, deu uma conferida à sua volta e, vendo-o, abriu um sorriso arrebatador. Prendi a respiração. Quase não consigo continuar lendo o livro da Barbie para a garota. Minha perplexidade e desespero eram tamanhos, que comprometeram definitivamente a voz amável que eu fazia para as falas da princesa. Ficou pior quando vi que ele se levantou e foi se sentar ao lado da deusa-loira na mesa de leitura. Tenho a impressão de que a história da Barbie, pela minha entonação, ficava cada vez mais violenta. A carinha da menina formava uma interrogação nítida. Os dois lá na mesa conversavam animadamente, num clima de flerte explícito, olhos nos olhos e sorrisinhos. Ai meu Deus, onde está a misteriosa mãe da Sofia quando se precisa dela? Nunca pensei que eu fosse querer tanto ver essa mulher. Não que fosse adiantar muito ela chegar aqui agora, porque ele nem aliança usa, provavelmente não são casados (tomara!). Talvez a presença da mãe até ajude, porque daí ela fica com a garota e o pai fica livre e desimpedido para a deusa-loira...
Não, nada de mãe da Sofia, melhor não. A história da Barbie acabou e a menina agora queria que eu lesse outra vez. Tive uma idéia brilhante e fiquei orgulhosa da minha própria sagacidade. Coloquei o livro nas mãozinhas dela e disse, carinhosamente:
— Princesa, pede pro papai ler pra você, pede!
Ela gostou da ideia e saiu correndo, dizendo aos gritinhos:
— Papai, papai, lê pra mim?!
Ha! Agora eu quero só ver, acabou essa paquera. Eu sou um gênio!!! Quando a pequena Sofia quer ouvir uma história, não tem jeito. Você tem que ler pra ela de qualquer maneira. Bem-feito. Quem essa deusa-loira pensa que é pra chegar aqui e acabar com meses de dedicação minha ao pai da Sofia? A gente já tava quase passando do “Bom dia” para o “Bom dia, tudo bem?” ; posso jurar que acho que ele até me dava umas olhadas promissoras de vez em quando... Era só uma questão de tempo até rolar alguma coisa. Se eu não fosse tão tapada pra esse negócio de flerte e tal.
Droga, não deu certo. Pelo menos não completamente. Ele pegou a Sofia no colo e quem ta lendo a história é a deusa-loira! Ah, não, não pode ser! Ele tá olhando com aquela carinha de feliz. A MINHA carinha de feliz. Tô arrasada. Que mais pode acontecer?! Ah, que legal, eu sabia que podia piorar. Eles estão indo embora... JUNTOS!!! Não acredito, ela tá indo junto com o pai da Sofia. O MEU pai da Sofia! Estão parecendo uma nórdica família feliz. Ai, que ódio! Preciso fazer alguma coisa, agora. Mas o quê, meu Deus???
Num último recurso desesperado, quase grito:
— Tchau, Princesa Aurora! Até sábado que vem!
Ai, meu Deus, fiquei maluca?! Eu realmente acabei de falar isso?! “Princesa Aurora” que patético! Eu devo ter surtado. Definitivamente. 
Sofia se virou pra mim e deu um tchauzinho sorrindo, mas o pai dela parece nem ter me ouvido, apesar de eu ter certeza de que a livraria inteira ouviu. Ele simplesmente não tira os olhos nem um segundo sequer da deusa-loira.
Que vaca, ela olhou pra trás, deu uma piscadinha cretina pra mim e olhou para o livro que deixou na mesa, com a orelha marcando a página. Ela pensa o quê, que isso não marca uma dobra na orelha, não?!
Vou até a mesa e pego o tal livro, cujo título é “SORTE NO AMOR – 52 Estratégias Infalíveis de Azaração, uma para cada semana (sem fazer papel de bobo)”(2). Ah, que ótimo! Por que, meu Deus??? Por que uma deusa-loira daquelas precisa ler um livro desses? Abro na página marcada e leio: 
* SORRIA PARA O SEU ALVO!
Inacreditável. Absurdamente inacreditável.
Então era isso? Era simples assim o tempo todo? Eu não precisava ter lido o Saramago, o Chico Buarque e o Gonçalo M. Tavares só porque ele folheou e comprou, na esperança de termos longas conversas sobre os livros? Putz, tanto tempo livre que investi lendo tudo aquilo, quando eu podia estar revendo meus episódios preferidos de “Sex and the City” ou “Gilmore Girls” ou até mesmo lendo os livros que ainda não li da Meg Cabot... Não acredito! Era só eu “sorrir para o meu alvo”? Não pode ser. E eu tentando tirar o meu sorriso idiota do rosto em todas as vezes que disse bom dia a ele... Incrível!
Ah, mas eu vou comprar esse livro. Ah, se vou! E aí não vai ter nada nem ninguém que me faça passar o dia dos namorados sozinha em casa me enchendo de chocolate e sorvete na frente da TV outra vez, não mesmo! Aquele bonitinho da faculdade, que me manda recadinhos fofos no facebook, acaba de ser promovido ao posto de próximo alvo. Vou começar a ensaiar os sorrisos ainda hoje.
Era esse o segredo. E eu o escondi o tempo todo...

Notas de referência:
1 - Barbie e o Castelo de Diamante. Fabiane Ariello, editora Fundamento. 2008.
2 - Sorte no Amor. Susan Rabin, editora Best Seller. 2009.

Comentários

  1. Nossa, tenho muito orgulho de vc e de nós todos por essa conquista!! Quem diria que um dia seríamos lidos?? E a Jacy, sempre inspiradora... rsrs.Bjs! Heraldo

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  2. Heraldo, querido!
    Sim, tenho muito orgulho de nós todos e de você também... hehe. Vi a matéria do Edney Silvestre e fiquei felizona por eles terem destacado um trecho do teu (ótimo) conto. Parabéns!!!
    E sim (2) a Jacy, sempre inspiradora... Deusa!
    Obrigada pela visita aqui nos meus diários, seja muito bem-vindo!!!
    Beijo grande com saudades. ;)

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  3. Adoreeeei, me diverti muito com a história!! Um sorriso desarma qualquer um. Sorria sempre!!

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  4. EEEhhhh filha, boa idéia de divulgar o livro por aqui..Parabéns mais uam vez! Tô te esperando pro Natal..Bjs!!

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  5. Anônimo,
    Que bom que a história te divertiu! A intenção era mesmo essa... hehe.
    Obrigada pela visita e pelo comentário!
    Abração.

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