#Contos: A Tempestade

Chovia torrencialmente, a cidade estava em estado de emergência e diziam na TV para ninguém sair de casa. Entre os números do desabamento e contagem de mortos anunciados o tempo todo, adormeci aninhada no meu edredom lilás, com a consciência tranquila. Afinal, eu tinha ido trabalhar, saí de casa e fui. Mas estava tudo fechado, o caos nas ruas, o comércio não abriu. Voltei pra casa. O lado bom dessa tragédia era que eu podia dormir, descansar... Esvaziar a cabeça de toda a ansiedade, angústia, dor e saudade. Não sei por que essa mania de bancar a Pollyanna, buscando sempre o lado bom das coisas, que chatice. Me entreguei ao sono bem-vindo, também na esperança de que, ao acordar, aquela dorzinha de cabeça já não me incomodasse mais.
Nem nos sonhos mais ousados que eu pudesse ter tido durante essas duas horas, eu poderia pensar ou adivinhar que acordaria com o refrão triste da música que escolhi para o toque do meu celular. Ainda num estado meio letárgico entre o sono e o despertar, atendi com um grunhido que deveria ser "alô". Uma voz masculina levemente familiar e ainda não identificada soou do outro lado, mas não entendi nada. Me sentei na cama, num esforço para acordar de verdade, tentando me concentrar no que ouvia. Perguntei quem era, ele respondeu: "- É você, Xica?" Só um cara no mundo inteiro me chama assim. E do jeito mais sexy possível. Imediatamente uma onda elétrica percorreu meu corpo e perdi a capacidade de respirar. Era ele, o meu presente de aniversário de 1,90m de altura!!! "- Não acredito..." - eu disse, ainda meio zonza. E ouvi aquela risada sacana e um pouco rouca do outro lado. Era ele, claro que era. Depois de mais de dois meses sem nenhum sinal de vida. “- Duvido que você venha me ver agora.” - me desafiou.
Com o coração acelerado, depois de desligar o celular, me levantei e fui tomar banho. A intenção era que fosse uma chuveirada rápida, mas as fantasias e lembranças em minha cabeça fizeram perder a noção do tempo. Eu me deliciava com a água, me olhava e pensava em quando nos conhecemos, no dia em que eu completava 26 anos. Foi tudo tão louco e inesperado... Por outro lado, também tive pensamentos ruins, vingativos. Uma pontinha de contentamento especial por, de certa forma, me vingar do outro. Bobagem minha, claro. Há meses que não tínhamos nada, nenhum tipo de laço ou compromisso. Aquele último encontro trágico, a briga horrorosa perpassou pela minha cabeça e eu me deixei lavar, queria que a água levasse toda aquela mágoa de mim para sempre. Queria me sentir pura e simples. Ou melhor, queria me sentir nova.
Em menos de 1 hora eu estava saindo de casa, enfrentando bravamente a tempestade com meu singelo guarda-chuva preto, para percorrer a pé os 100, talvez 150 metros que nos separavam. Nem por um momento fiquei incomodada com o fato de que meus allstar se molharam nos primeiros 5 segundos depois que bati o portão. E eu já estava com a roupa toda úmida quando o vi, embaixo de um guarda-sol enorme, segurando um saco cheio de cervejas. Senti um impulso de correr, quase como o instinto de sobrevivência, como se minha vida dependesse disso. Com um esforço, tentei não me atirar nos braços dele enlouquecida, mas assim que nos aproximamos, protegidos pela marquise de uma banca de jornais, senti minha cintura envolvida por seus braços  fortes, fiquei na ponta dos pés e o beijei.


Era um beijo urgente, intenso, forte, quase vampiresco. A sensação que tomava meu corpo estava longe de ser normal. Entrelacei meus dedos pelo cabelo dele, agora mais compridos, assim como a barba, e, mais uma vez fiz um esforço enorme para me controlar. Quando abri os olhos as vi, as duas íris profundamente verdes sorrindo pra mim, tive de me esforçar ainda mais, dessa vez para não cair. Sorri de volta, consciente de que estava com as bochechas vermelhas, o que me deixou ainda mais sem graça. Como da outra vez, ele se divertiu com isso, e brincou: "Ainda corando, menina?" Então eu respondi: "Você sumiu, pensei que nunca mais nos veríamos..."  "Mentirosa, você sabia que quando eu resolvesse aquele assunto, voltaria pra te buscar. Eu te disse, não foi?! - disse isso acariciando minha nuca, o que me fez fechar os olhos, aproveitando a sensação e sentindo o cheiro bom que vinha dele. Eu poderia ficar ali pra sempre,  sentindo seus dedos deslizando pelo meu cabelo, nada mais importava.  E me senti livre. Absolutamente livre de tudo aquilo que havia passado. Livre da dor. Leve.
Foi quando sua mão quente tomou a minha, me puxando para fora da marquise. Era hora de ir, já estávamos muito atrasados, tínhamos que recuperar o tempo perdido. 


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