Zumbindo

Como tudo mais que já não tinha, só deu por sua falta quando o perdeu. Antes, ele a angustiava e deprimia com sua presença pungente, todas as noites e manhãs, desenrolando à sua frente, um dia depois do outro, a bandeira da solidão em vez da paz. Agora, sua ausência a martiriza de maneira atroz, numa agonia constante. Sem misericórdia nem compaixão.
Ela não se lembra muito bem quando foi que o perdeu de vez. Há uns quinze anos, ele costumava sumir depois de noites badaladas, micaretas ou raves ensurdecedoras. Mas sempre voltava, plácido, como não poderia deixar de ser. Talvez tenha sido a displicência ou idade que o afastaram definitivamente. Seria doença? Não, Deus não permita uma desgraça dessas! Vai, reza, tem fé que tudo há de voltar a ser como era.
Começou a estranhar ao perceber naqueles momentos em que se deita, já depois da meia-noite, no escuro do seu quarto - agora exclusivamente seu -, uma espécie de apito agudo vindo das profundezas de sua mente. No início não deu importância. Seria só algo passageiro, uma bobagem. Só que essa efervescência travestida em som continuou se impondo, cada vez mais alta. A cada noite mais nítida.
O guincho da sereia a convida a mergulhar na profundezas dos pensamentos mais perdidos e insólitos. Ela não consegue resistir ao chamado e segue em direção às trevas geladas da rejeição, da solitude. Sente medo. Frustração. Dor. Culpa. Saudade. Insegurança. Sente as batidas do coração e a cabeça latejar. Fecha os olhos e aperta bem as pálpebras, como se pudesse empurrar tudo isso pra longe de si mesma, bem longe dali. Mas não pode.
A tortura vai se estendendo para além de semanas, meses até. Ela então pinga o remédio oleoso para dentro do ouvido e toma comprimidos caríssimos que não são nenhuma garantia de cura, se é que ela existe. Se obriga a ter esperança e acreditar que tudo vai passar junto com o zumbido. É só uma questão de tempo. Por que está chorando? Não é nenhum câncer, ninguém está morrendo! Se anima, é jovem e tem uma vida inteira pela frente. Tem trabalho, casa, família e mais amigos do que tempo pra passar com eles. Qual é o seu problema? Seja grata, acredite na providência divina. Ore. Espere. Confie. Faça por merecer. Não fique triste, não se deixe abater, não chore, não grite, não se desespere, não pule.
Quer esquecer tudo de ruim. Quer esquecer a outra falta. Que amar... Mas como realizar sonhos e ser feliz sem o seu silêncio precioso? Esse alarme disparado 24 horas por dia, sete dias por semana, faz com que ela se mantenha em estado perene de alerta. Pronta pra explodir a qualquer momento, com uma faísca qualquer. Ninguém mais pode ouvir, só ela, o tempo inteiro, escutando um grito agudo de pavor que aumenta ainda mais quando tenta abafá-lo. Não há nenhuma saída, não pode correr nem se esconder. Só durante o sono está livre desse tormento, mas fica sempre mais difícil adormecer com o barulho impertinente.
Tenta enganá-lo com falsas ondas do mar, chuva, passarinhos, música para relaxar... Qualquer coisa que mude o foco para outro lugar. Mas ele continua ali, esperando a primeira brecha de atenção pra esbravejar aos quatro cantos do cérebro. Estaria ficando louca? Não, se estivesse, sua psicanalista teria diagnosticado, imagina.
Não é nada, vai passar. É só uma fase. Pode ser o retorno de Saturno, ou o inferno astral, ou a TPM, ou tudo isso ao mesmo tempo. Ela é forte, aguenta. Jura pra si mesma que não está sozinha e que pode perfeitamente ser feliz sem eles. O silêncio e o outro.
Foto: Sérgio Rousselet

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