A Noiva

             Foto: Lorena Nicácio fotografia   

   Toda mulher apaixonada sonha com o dia do seu casamento. No meu caso sempre foi a noite da véspera. Houve um tempo em que, deitada em minha cama de solteira sozinha e assombrada pelos fantasmas da ausência, rejeição, dor, abandono e toda espécie de sentimento ruim que aparece no lugar do sono, eu achei que essa noite nunca chegaria. Conseguia até me ver, uma velha apática morando num apartamento em Copacabana, cheio de gatos e solidão, se tivesse a sorte de ganhar dinheiro suficiente pra comprar um. Mas a partir de amanhã, essa sombra vai desaparecer. Serei parte daquela famigerada entidade chamada casal. Completos e felizes, vivendo uma linda história de amor digna de um conto de fadas moderno ou um romance best-seller. Quase não consigo me convencer de que sim, isso está realmente acontecendo: vou me me casar com o amor da minha vida e serei feliz para sempre.
***
   Era só mais um chope com o pessoal do escritório. Maria Angélica tinha prometido a si mesma que faria só uma "presença VIP", uns drinks e pronto, pegaria o último metrô para casa. Mas acontece que a cerveja holandesa estava muito barata e então todo mundo foi se empolgando, empolgando... Quando se deu conta, já passava da meia-noite. "Vamos chamar um táxi", alguém anunciou. A aleatoriedade é uma coisa embasbacante. De repente alguém chama, o outro vem, e os dois não fazem ideia de como tudo seria diferente depois do encontro.
   Ela queria apenas chegar em casa logo, tirar o vestido novo e perder a consciência embalada nos braços de Morfeu. Porém, assim que se sentou no banco de trás do carro, buscou o retrovisor e o viu. Com uma expressão marota nos olhos e um sorriso cafajeste no canto da boca, ele dava boa noite e perguntava "para onde". Lapa, Grajaú e Freguesia, os quatro responderam.
   Dali onde estava Maria Angélica conseguia ver a nuca dele, parte das costas - tinha ombros largos - e o braço direito. Já um tanto alta por causa da cerveja, não resistiu à vontade de tocá-lo, pousou a mão na lateral da manga da jaqueta de couro que ele usava e perguntou:
   - Está com frio?
  Antônio Alves respondeu que o motivo do agasalho era o vento forte no trajeto que percorreu de moto até pegar o carro para começar a trabalhar. Disse isso olhando em seus olhos no espelho. Pelo ângulo, ela não via sua boca, mas o sorriso safado estava presente ali.
No decorrer da breve viagem, os amigos riam e conversavam animadamente com Antônio, que embarcou no clima descontraído e se mostrava extrovertido. Em meio às gargalhadas e brincadeiras, o taxista quis saber do escritório, já que o motivo da farra tinha sido a mudança de endereço da empresa. Fez a pergunta mais uma vez estabelecendo contato visual pelo retrovisor e Maria Angélica aproveitou a deixa para abrir a porta que o deixaria entrar em sua vida. Enfiou a mão dentro da bolsa, pegou um cartão e lhe deu, com a desculpa de que lá ele encontraria o link para abrir o site da companhia. Mas o que mentalmente estava dizendo era: "Aqui está o meu telefone, espero que me procure". Ele se virou por um segundo para pegar o cartão, os dois se olharam, próximos. Já estavam fascinados, a atração era forte.
  Deliciada pela sensação empolgante do flerte, ela começou a tagarelar, falava qualquer coisa engraçada que lhe viesse à cabeça e ria com vontade, tentando parecer encantadoramente leve e divertida. Contudo, perdeu o fôlego quando o pararam em um sinal vermelho e a luz do poste refletiu algo brilhante na mão direita do motorista. Mesmo sabendo que aquilo era claramente uma aliança de noivado, fez a pergunta em voz alta.
   - Você é noivo? - notou que as palavras saíram de sua boca num tom alto demais.
   - Você tens olhos de lince, hein?! Como é que conseguiu enxergar minha aliança a essa distância? - ele disse, em tom de brincadeira.
   - Então você é mesmo noivo, não é? -  ela insistiu.
   - Sou... Sou sim. - confirmou, com uma promessa velada no olhar através do espelho.
  Foi tomada pela frustração com uma força avassaladora. "Mas é claro", pensou. Estava perfeito demais pra ser verdade, quase uma primeira cena de comédia romântica. “Essas coisas não existem na vida real, só na ficção”, repetiu mentalmente mais uma vez.
Maria Angélica então entrou em um modo alheio e superficial da conversa, assentindo e concordando monossilábica de vez em quando. Tinha consciência da atmosfera magnética que a atraía para ele, mas resolveu ignorar. Em pouco tempo estava descendo do carro, depois de pagar sua parte na corrida com o cartão de débito. Ele havia olhado intensamente em seus olhos quando foi entregar a máquina para colocar a senha, mas a essa altura ela já estava decidida a fechar a porta.
  Duas horas depois de ter chegado em casa ainda não conseguia dormir. Por volta de 1:30 da madrugada rolava de um lado para outro na cama e repassava os acontecimentos da noite na cabeça. Se lembrou do cartão que havia dado a Antônio. Que merda! Por que tinha que ser dessas que tomam a iniciativa? Maldito "Sex and The City" e sua cartilha da mulher moderna e independente. Pegou o celular e viu o número 1 sinalizado no aplicativo de mensagens. Soube imediatamente que era ele. Abriu e leu: "Oi Maria Angélica" - Enviado às 23:47. Embaixo do número de telefone dele, a palavra "online" indicava que estava conectado. Uma ironia tamanha, já que a conexão entre os dois ia obviamente muito além do alcance da telefonia celular. Se sentiu impelida a responder, justificando a si mesma: "Nem que seja por educação, afinal fui eu que lhe dei o meu contato".
   - Oi Antônio
   - Achei que não queria falar comigo
   - Fiquei sem bateria. Mas você nem deveria estar falando comigo.
   - Por que? O que eu fiz?
   - Primeiro porque você está dirigindo. Segundo porque você é noivo.
   - Me desculpa.
   - Está se desculpando por que?
  Mesmo sabendo que aquela conversa não levaria a lugar nenhum, Maria Angélica não pôde interrompê-la, muito menos terminá-la. Foram duas horas e meia naquela madrugada de perguntas e respostas, sorrisos e mordidas de lábios. Ela estava gostando do que lia... Ele era engraçado, gentil, sedutor e muito envolvente... Ainda que noivo. Acabou por concordar em reencontrá-lo na noite seguinte, depois de terem acertado que seriam só amigos, apesar de saberem lá no fundo que isso estava longe de acontecer. Comprou uma cerveja longneck enquanto o esperava e acendeu um cigarro, o que significa que era oficial: estava nervosa. Entrou no táxi ouvindo as batidas fortes de seu coração reverberarem por todo seu corpo e abriu um sorriso largo. Ali soube que estava encrencada.
 
***

Vejo uma noiva de véu e grinalda refletida no espelho e mal posso acreditar que sou eu. Faltam poucos minutos para a minha entrada na igreja, para a celebração do nosso amor diante de todos. Apesar de tudo que tivemos de  passar para ficarmos juntos, finalmente vamos ser marido e mulher, formaremos uma família linda. Não posso chorar, vai estragar a maquiagem! Preciso me apressar. Vejo meu buquê e me lembro de quando peguei aquele que voou das mãos de Hilda, minha melhor amiga, para as minhas há quase um ano. É verdade o que diz a superstição, sou eu a próxima a  casar. Chegou a hora! Vou dizer sim para Antônio, o homem da minha vida!


   Enquanto dirigia, os olhos de Antônio escapavam sempre que possível para ela durante o trajeto. Era completa e absolutamente diferente de Betty, sua noiva, em todos os sentidos. Alta e morena, Maria Angélica não passa despercebida em nenhum lugar em que esteja. É daquele tipo falsa magra, com seios pequenos, mas quadril e coxas cheios de curvas. Usa os cabelos cortados na altura do queixo, o que dá um ar modernoso e um tanto rebelde. Tem traços fortes, olhos de uma cor que engana: ora parecem castanhos, ora esverdeados. O nariz é adornado por uma argola tão fina que se você não prestar muita atenção nem vai notar. Para completar, os lábios grandes e volumosos. Sua boca parece provocá-lo de propósito, instigando seus desejos mais primitivos. Esta que estava ao seu lado era uma intrigante combinação de mulher madura e menina. Do alto do seus 30 anos, é extremamente atraente, se mostra dona de si e o desafia com as sobrancelhas arqueadas. Mas quando ri, parece uma garotinha, uma ninfeta talvez. Ele sente vontade de abraçá-la e protegê-la quando ri assim. E sente outras vontades não tão inocentes quando ela morde o próprio lábio da maneira tão lasciva.
  Já Betty, a noiva, é o contrário disso. Loira, pequena e frágil, uma moça de muita delicadeza. Sua aparência indefesa e comportamento excessivamente gentil (beirando a subserviência) o conquistaram. Ela parecia “a esposa perfeita”, dedicada, prestativa, doce, de bom caráter. A clássica mãe dos seus filhos. O relacionamento dos dois era fácil, confortável, aconchegante. Nunca haviam brigado pra valer. Quando se chateava com alguma coisa, ela costumava ficar calada e esperava que ele viesse se desculpar. Sempre perdoava. O casamento já estava marcado para dali a uns meses. Apartamento pago, vestido escolhido, os preparativos adiantados. Já estavam juntos há 6 anos, não havia nenhuma dúvida de que queriam se casar e passar o resto da vida com o outro. Até então.

    No instante em que fechou os olhos e o beijou, Maria Angélica sentiu tanta coisa ao mesmo tempo que foi impossível distingui-las. A sensação era desconhecida, atordoante. Percebeu que seu corpo estava em guerra com a razão e o coração não sabia de que lado ficar. Nunca se viu como o tipo de gente que sente tesão em fazer algo proibido ou errado e agora estava tendo a prova: não era mesmo. A batalha maior dentro de si era a libido X culpa. “Tão freudiano isso”, pensou depois. Ao abrir os olhos, encarou Antônio por alguns segundos e em seguida olhou para a aliança… Não era seu nome gravado ali dentro. Se sentiu uma cretina por estar fazendo uma desconhecida de otária. Sim, era cúmplice daquela traição e agora nunca mais poderia repetir aquela frase que dizia com tanto orgulho: “Jamais me envolvi com homens comprometidos”. Saiu do carro quase correndo, sem conseguir articular uma explicação coerente. Em sua mente a realidade estava clara como água. Maria Angélica tinha virado uma amante.
   Depois daquele primeiro beijo, não adiantou os dois fugirem. O amor que nasceu ali gritou, esperneou e fez com que não conseguissem ficar longe um do outro, então desistiram de resistir e se entregaram à paixão. Foi quando fez amor com Maria Angélica pela primeira vez que Antônio soube que não poderia mais se casar com Betty. Sabia que desmanchando o noivado ia causar um enorme sofrimento a ela, mas paciência. "Não se faz um omelete sem quebrar alguns ovos", pensou. Decidiu colocar o ponto final na história que o impedia de ser livre, mas antes que pudesse fazê-lo, aconteceu o pior: a noiva descobriu. Algo se partiu dentro de Betty quando leu as mensagens apaixonadas do futuro marido para outra. Aquelas juras de amor eram um acinte! Com ela nunca tinha sido daquele jeito romântico e sensível... Mas as palavras escritas para "seu anjo" eram mais doces do que todas as que tinha dito a ela esse tempo todo que estavam juntos. Se sentiu nauseada, ultrajada, humilhada... Resolveu então assumir o clichê da mulher traída e o confrontou com um escândalo. Ele disse apenas que "aconteceu". Não foi planejado, mas se apaixonou. Esboçou um pedido de desculpas e em 20 minutos saiu de sua vida. Uma juventude inteira docilmente dedicada àquele homem, e agora, no fim, nenhum carinho, nenhum afeto. Falas de uma vilã de novela mexicana vieram à sua mente: “Você vai me pagar caro por ter feito isso comigo! Vocês dois não serão felizes juntos, eu juro! Custe o que custar”.
  Pouco mais de seis meses depois era chegado o dia do casamento de Maria Angélica e Antonio. Não ouviram nem mais uma palavra de Betty desde a homérica briga de fim do noivado, o que causava uma certa angústia no novo casal. O taxista sabia que a promessa feita pela ex no dia que descobriu a traição não tinha sido da boca para fora. Uma vez ela havia feito um comentário que ele nunca esqueceu: disse que se fosse traída, iria escarafunchar a vida da rival até mesmo antes de seu nascimento e encontraria algum podre, algo que mostrasse a ele que estava com uma vagabunda. Acreditava piamente que toda mulher que sai com homem comprometido é leviana e tem o passado negro. Infelizmente Antônio não estava com receio à toa.
   Betty se vestiu de preto naquela manhã de domingo, se arrumou calmamente, demorando mais que o necessário na maquiagem e no cabelo. O ódio fervilhava em seu corpo e sentia o sangue talhar dentro das veias, feito leite coalhado, toda vez que se lembrava que esse deveria ser o dia mais feliz de SUA vida, não da piranhazinha. Ela deveria ser a noiva. Somente ela e mais ninguém. Contudo, a despeito de toda mágoa e humilhação, hoje seria de certo modo um dia feliz. Tinha em suas mãos o dossiê que materializava sua vingança. Havia conseguido um motivo muito melhor do que jamais teria imaginado para separá-los. Um motivo que não dava margem para nenhum recurso, nenhum contorno de situação, nada… Era mais que errado, mais que pecado. Chegava a ser nojento, repulsivo. Seu corpo todo tremia de nervosismo e excitação… Ansiava por ver a cara de Antônio quando soubesse da verdade. Tinha certeza de que seria consumido pelo arrependimento e se ajoelharia a seus pés implorando perdão, pedindo que o aceite de volta, que seja sua mulher.
   Dirigiu até o hotel onde combinou de apanhar aquele que era a prova viva da bomba que estava prestes a lançar. Quando chegaram à igrejinha (mixuruca, na sua opinião), deu um jeito de se sentar com ele num canto escondido e continuou obrigando-o a seguir suas ordens. Usou seu sorriso angelical - que ironia! - e o convenceu De que a surpresa seria melhor ao final da cerimônia, o melhor presente de casamento que sua querida filha teria. Esse gesto ajudaria na reconciliação deles, após passarem tantos anos afastados. Idiota, ele acreditava em cada palavra.
   Fez um esforço descomunal para segurar sua ira e a vontade quase incontrolável de rasgar aquele vestido sem graça com o qual a biscate entrou na igreja até momento em que o padre começou a proferir a célebre frase: “Se alguém tem alguma coisa contra esta união que fale agora ou cale-se para sempre”. Nesse momento nem passava pela cabeça de Maria Angélica a possibilidade de alguém se pronunciar. Mas para sua total e completa surpresa ouviu uma voz aguda afetada congelar toda a atmosfera do recinto:
   - “Eles não podem se casar, Padre" - declarou Betty.
O casal não precisou nem mesmo se virar para saber que era a ex-noiva rejeitada que estava ali, armando um escândalo para tentar impedir a concretização de sua felicidade. Maria Angélica já tinha visto essa cena um zilhão de vezes nas novelas. Era inacreditável que alguém realmente fizesse isso na vida real. “Que mulherzinha melodramática e cretina, Meu Deus!”, pensou, indignada. Já estava segurando a saia do vestido um pouco acima do chão com as duas mãos e abrindo a boca para mandá-la sair já dali com seu look de extremo mau gosto, quando ouviu a declaração que transformaria a comédia romântica que estava vivendo em um drama psicológico.
   Esses dois são filhos do mesmo pai. São irmãos!!! - continuou a megera.
A afirmação lhe parecia tão surreal que Maria Angélica teria caído na gargalhada, não fosse pela gravidade da situação e o fato de um homem, que a lembrava muito seu pai, estar do lado da recalcada no canto do último banco, perto da porta. Tão surpreso quanto ela própria, ele parecia pedir desculpas com os olhos, com a expressão de alguém que caiu numa daquelas “pegadinhas do Mallandro”. Olhou para sua mãe, que adivinhando a pergunta, assentiu com a cabeça confirmando. Era mesmo seu pai ali. Não se viam há mais de uma década, e ele havia aparecido para acabar com seu casamento.
   Pouco mais de 15 minutos foram necessários para que a desgraceira toda se completasse. Antônio pegou Betty pelos punhos e a levou para fora, sob protestos, se esforçando para não perder o controle. Ele tinha certeza que a ex havia inventado essa história maluca e que a faria desmentir o absurdo. Acreditava que em pouco tempo estaria casado e embarcando para a lua-de-mel no México, exatamente como estava planejado. Enquanto isso Dalva, a mãe, e Hilda levaram-na para a sacristia. O burburinho de espanto entre os convidados só aumentava. Mas estava sacramentado: naquele domingo de maio não haveria casamento, nem bolo, bem-casado, ou mesmo foto do brinde e buquê jogado para as solteiras. Nada. Só choro e tristeza.
   Betty explicou que o pai de Maria Angélica havia morado no Rio de Janeiro, dois anos antes de voltar para o interior de Minas Gerais e conhecer Dalva. Durante os três meses que passou em Marechal Hermes, ele engravidou a mãe de Antônio, com quem teve um envolvimento fugaz de poucas noites. Os dois nunca mais se viram e quando Élcio foi embora, Vera nem desconfiava que estava esperando um filho dele. Antônio não conhecia o pai, que sempre foi "desconhecido" em sua carteira de identidade. Entretanto, bastou sair o resultado do teste de DNA dos dois, realizado no dia seguinte à revelação, para comprovar o pior: Antônio era mesmo filho de Élcio e irmão de Maria Angélica.
***
   Já se passaram quase nove meses desde o dia do meu não-casamento. É engraçado como minha memória daquele domingo sangrento (perdoe o trocadilho infame) ficou entrecortada. Só me lembro dos flashes. O olhar apaixonado de Antônio quando me viu entrar na igreja, a força com que meu coração batia, a dificuldade para respirar, os tremores percorrendo meu corpo. Tudo foi por água abaixo tão rápido quando aquela bruxa mensageira da agonia abriu a boca e vomitou o incesto em cima de nós... Em volta de mim os olhos refletiam choque e pena. O rosto de meu noivo - meu irmão - estava esfacelado depois de ter confirmado a história. E aí muitos calmantes me foram empurrados goela abaixo… Minha mãe me disse mil vezes que ia ficar tudo bem, me garantiu que a dor ia passar. Era mentira. Há algum tempo parei de ver Antônio, porque machuca demais ver o amor da minha vida, lembrar tudo que vivemos juntos e saber que é errado de um jeito que eu nunca pensei que seria. Estamos no carnaval, sabia? Milhares de pessoas pulam felizes pelas ruas da cidade, numa euforia patética e sem motivo certo ou aparente. Minhas amigas já cansaram de tentar me tirar de casa, desistiram. Fiquei amarga, desacreditada da alegria, incapaz de sorrir... Fraca. Eu sei que o que vou fazer agora também é errado. Só que nada que eu possa fazer é pior que o que já fiz com meu irmão. Só quero que a dor pare. Já tentei de tudo, chega. Preciso acabar com isso. Comigo. Chegou a hora de pôr um fim nesse sofrimento.
***
    Maria Angélica preparou a clássica cena da morte na banheira. A despeito do que sempre disse nas conversas idiotas de mesa de bar - que se fosse se matar algum dia, ligaria o gás e morreria sem dor - decidiu por cortar os pulsos e deixar a vida se esvair junto com o sangue na água morna. Da mesma maneira que muitas divas já fizeram. Tinha lido na biografia da Maysa que ela fez isso uma vez. Entendia perfeitamente o que dizia aquela canção “Meu mundo caiu”. Acendeu velas, se vestiu com espartilho e cinta-liga, colocou um colar de falsas pérolas. Parecia a direção de arte de um espetáculo burlesco. Poderiam até fazer um filme sobre sua vida depois. Uma tragédia grega, é claro. Se esforçou para não pensar no desespero de quem a encontrasse, torcia para não ser sua mãe. Não escreveu nenhuma carta de despedida, afinal, não precisava explicar seus motivos, eram muito óbvios. Tinha tentado viver sem ele, esquecer tudo, mas não conseguiu. Então esperou pelo carnaval, porque, mesmo se fosse socorrida a tempo, ia precisar de sangue, e nessa época sempre falta estoque de plasma nos bancos. Além disso, achou irônico se matar em plena festa da carne. Morrer no meio da histeria coletiva, em clima de festa, beijos e sedução… Era até glamoroso.
    Dalva sabia que não deveria deixar a filha sozinha, mesmo já tendo passado tanto tempo. Tentava, ao máximo que conseguia, ficar ao lado dela, mas cada vez mais ela a evitava. Indócil, era ríspida e hostil, dizia que precisava da solidão, que tinha direito de ficar triste e que já era adulta. Na noite de terça-feira de carnaval para quarta-feira de cinzas, teve um sonho ruim e acordou sobressaltada no meio da madrugada. Depois de ter ligado algumas vezes para a casa e para o celular de Maria Angélica, sem resposta, resolveu se vestir e ir até seu apartamento.
  - Mas querida, você vai sair no meio da noite, no feriado? Não tem cabimento, ela deve estar dormindo… Relaxa e volta para a cama, vai. - pediu seu marido, fazendo um apelo ao bom senso da mulher.
   - Não me atormenta, Jorge! Algo de terrível aconteceu ou vai acontecer com minha filha, eu sinto. Vou até lá, sim! E não vai ser você nem um zilhão de foliões que vão me impedir. -, ela retrucou, enquanto entrava em um vestido e calçava a sandália de dedo, saindo em seguida.    
    Por sorte, o timing da intuição materna nunca falha. Dona Dalva entrou no apartamento bem a tempo de encontrar Maria Angélica ainda com vida, apesar de já inconsciente. Por sorte, tinha feito uma cópia da chave às escondidas. Por sorte, não desabou ao ver sua menina dentro de uma banheira de sangue, ao contrário, foi forte o suficiente para tirá-la de lá com seus próprios braços e gritar por socorro, chamar a emergência e acompanhá-la até o hospital. Se apegou ao fio de esperança que lhe dava a certeza de que ia conseguir salvá-la. Tinha chegado a tempo. Sua menina tinha que sobreviver.
    Mas o plano estava preparado para dar certo. Os bancos de sangue estavam praticamente vazios. Maria Angélica precisava de uma transfusão o quanto antes, porque tinha perdido quase todo o seu. Dalva se desesperou por não poder doar, porque era do tipo AB positivo, e a filha O negativo. Começou a telefonar para os amigos e parentes, correndo contra o tempo, mas ninguém atendia o maldito telefone. Decidiu procurar pelo meio-irmão, já que era o familiar mais próximo além dela, a mãe, e Antônio veio correndo antes mesmo de saber que teria de doar sangue. Chegou esbaforido, magro, uma sombra do rapaz bonito que era antes do não-casamento. Ainda assim, estava pronto para dar até a vida se fosse preciso para salvar a irmã (toda vez que falava ou pensava nela se obrigava a usar essa a palavra: irmã). Contudo, não pôde. Era A positivo. A salvadora acabou sendo Hilda, que tinha o mesmo tipo sanguíneo e fator RH que a melhor amiga. Nos bons tempos, as duas brincavam que eram gêmeas bivitelinas separadas na maternidade e foi isso que fez acontecer milagre que salvou Maria Angélica da morte voluntária planejada.
***
    A carta da morte no tarô simboliza o renascimento, a renovação. Quando ela aparece no jogo, significa que algo precisa morrer para que outra vida comece. Eu sabia disso, mas não pensei que nasceria de novo quando tentei me matar. Se por um lado me arrependo do que fiz, pois poderia ter de fato morrido, por outro, sou grata porque justamente meu suicídio malsucedido tenha me levado de volta para a felicidade e para os braços de Antônio. A coisa toda dos tipos sanguíneos deixou minha mãe com a pulga atrás da orelha, porque quando ela ligou para o meu pai e ele também não era compatível, perceberam que havia algo errado. Procuraram um médico e ele disse que biologicamente era praticamente impossível que eu fosse filha legítima dos dois. Então resolvemos fazer mais um teste de DNA, e descobri que na verdade não sou filha dos meu pais… Nunca pensei que eu fosse ficar tão feliz com uma coisa dessas. Ainda não descobrimos exatamente o que houve, mas é muito provável que eu tenha sido trocada na maternidade logo depois do parto. Minha mãe ficou em choque e está procurando a outra garota, é claro. Eu sei que vou amá-la para sempre e agora mais ainda, porque a Dona Dalva me deu a vida, sim. Me devolveu a vida que tiraram de mim e com a qual eu quis acabar também. Nada mais importa, só Antônio e o nosso amor, que não é mais proibido, nem errado. Vamos nos casar daqui a 3 dias, em Vegas, porque não queremos perder nem mais um minuto com preparativos, cerimônia, festa e convidados. Vamos ser felizes para sempre e esquecer toda essa loucura que foram os últimos meses. Tenho certeza que desta vez nada e nem ninguém vai nos impedir se nos tornarmos marido e mulher. Sem incesto, seremos uma nova família. No melhor sentido dessa palavra.

 Foto: Lorena Nicácio Fotografia

Comentários

  1. Texto mto bem escrito e enredo envolvente. Adoreei a história. Parabéns Samyta!

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