Felix quer dizer Feliz

Eu gosto de pensar que você chegou na vida da minha mãe junto comigo. Me faz sentir que Deus mandou você pra ser o pai que eu ia precisar. E você foi mesmo. Durante 30 anos, você foi meu maior incentivador e entusiasta, meu professor, meu amigo e companheiro de todas as horas. Mais do que isso, você foi o primeiro homem que me amou, sem ter nenhum laço sanguíneo comigo, sem ter obrigação nenhuma, sem eu ter feito nada pra merecer isso... Você me amou incondicionalmente e foi incrível!
Se fosse possível mensurar o quanto eu te devo, acho que essa conta não caberia aqui. As primeiras lembranças que eu tenho de você, engraçado, são de cartas e fotos. A presença da sua ausência era palpável, a iminência da sua chegada, que para alguém tão pequena como eu parecia demorar uma eternidade, mas finalmente você chegou. E partiu novamente, chegou mais uma vez e foi viajar de novo. Contudo, por mais que a saudade nos permeasse nesses períodos de afastamento, eu agradeço por eles, pois justamente por isso você sempre foi minha janela para o mundo. Eu olhava pra você e via tanta coisa que eu não conhecia... Lugares, pessoas, coisas, explicações... O mundo além da nossa cidade. Não me lembro de você ter respondido nem sequer uma vez "não sei" para qualquer dos meus porquês. Você sabia de tudo um pouco e muito de quase tudo. Quando eu te pedi pra me ensinar a contar até dez em inglês, porque todas as minhas amiguinhas da escola sabiam, você disse: "Então vou te ensinar a contar até vinte, porque assim você vai saber o dobro do que todas sabem". Com sua paciência de sempre, ficou horas repetindo "twelve", "thirteen", "fourteen"... Até eu aprender.
Houve um tempo que você veio morar no Rio de Janeiro e me lembro perfeitamente da alegria que era receber as caixas cheias de presentinhos que você mandava. Ainda tenho o postal que me mandou, da novela "Terra Nostra", cuja mensagem começa assim: "Querida sobrinha, daqui da cidade maravilhosa..." Ah, tio, suas palavras me transportavam pra junto de você e essa cidade dos sonhos, que agora é minha morada.
Nossa conexão era quase telepática: os presentes que me deu nunca precisaram ser trocados e vice-versa. Nos entendíamos melhor do que pai e filha, porque nunca brigamos. Nem sequer uma vez você precisou levantar a voz pra mim e eu sempre te respeitei e admirei.
Lembra quando eu tive que fazer sozinha aquele projeto da feira de ciências? Nunca vou me esquecer: eu estava triste e desanimada, porque não havia conseguido desenvolver nada e faltavam apenas dois dias para a feira. Você me segurou pela mão, me levou a vários lugares, dedicou todo seu tempo entre a biblioteca, minha casa e maternidade... Até que conseguimos tudo que precisávamos pra apresentar todas as fases da reprodução humana. Meu projeto foi um sucesso! Era assim acontecia com tudo que eu queria fazer: minha fantasia de deusa grega, as moedas de cruzado novo que ficamos horas contando para trocar por real, minha festa de aniversário de 18 anos... Você nunca me deixou sozinha.
Depois que eu saí de casa, nada mudou. Sua risada acolhedora e os braços abertos pro abraço estavam sempre lá, a cada retorno meu. Seu modo peculiar de dizer as horas "nos bons relógios..." Ainda ecoa em meu pensamento toda vez que ouço alguém perguntar que horas são.
Nesses 30 anos, nunca te vi triste. Nem quando você estava visivelmente adoentado e tão magrinho, nem quando as coisas estavam mais difíceis do que você nos deixava saber. Nem uma única vez. Fazendo jus ao seu sobrenome, você sempre espalhou alegria em torno de si, até quando seu riso era debochado. Quantas vezes nos entreolhamos no meio de uma conversa, e você fazia uma careta, nosso código secreto, que era símbolo da nossa cumplicidade? E quantas outras vezes, você me sentou num canto e falou sério, me puxando a orelha e dizendo o que eu precisava ouvir, sem precisar brigar?
Ah, tio Wagner... O mais triste é você ter partido sem que eu tivesse a oportunidade de me despedir. E de dizer mais uma vez o quanto eu te amo e o quanto você foi fundamental na minha vida, em todos os momentos. Saber que não vou ter mais nossas conversas intermináveis, nossa troca de experiências, o papo animado na cozinha enquanto você fazia pratos refinados especialmente pra mim... Tudo isso é muito duro. Você me conheceu e me compreendeu como talvez só a minha mãe. Mesmo assim, nossa relação era diferente, só nossa. Uma parceria que nunca falhou nem enfraqueceu. Para nós não existia tempo nem distância.
Você foi meu referencial masculino. O melhor que uma garota poderia ter. Você me mostrou que os laços de amor vão muito além de qualquer ligação sanguínea. Foi meu primeiro melhor amigo e repetiu tantas vezes que eu nasci para brilhar, que não tive outra escolha senão acreditar nisso.
É triste você ter ido embora antes de eu conseguir retribuir ao muito que você fez por nós. Eu sempre pensei, sabe, que um dia eu iria comprar um apartamento grande, com um quarto pra te receber. Que iria te ajudar financeiramente, que você seria um vô pra Aurora, minha filha... E agora isso tudo ficou guardado aqui no meu coração, junto com esse amor todo que te tenho.
Mas eu vou pensar que essa é só mais uma viagem que você fez... E que nossa telepatia continua "funcionando", ainda que eu não saiba onde exatamente você está. Vou torcer pra que você continue feliz e rodeado de amor. E mais do que tudo: vou torcer muito pra que um dia nos reencontremos e eu possa sentir seu abraço mais uma vez.
Obrigada por ter me amado tanto, tio Wagner.
Eu vou te amar pra sempre.



Comentários

  1. Samyta, sou amiga da sua mãe e visito sempre seus diários.
    Quis comentar especialmente hoje porque este foi um post que me encantou de verdade.
    Que linda relação de amor e amizade! Uma destas que muita gente passa pela vida sem experimentar e por isso, sinta-se realmente abençoada por ter recebido este belo presente! Bjs, Ana Cláudia

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    1. Obrigada pela visita e pelas palavras carinhosas, Ana Cláudia.
      Fico contente em saber que você está sempre por aqui e que gostou desse, que me custou tanto escrever...
      Um abraço e um beijo grande
      S.

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